Modelagem do Problema

 

As atividades de ensino com o uso do computador que têm sido sugeridas ou produzidas pela Área de Educação Química da UFRGS possui alguns de seus aspectos técnicos baseados em propostas desenvolvidas em diversas localidades do mundo [1,2,3]. No entanto, notou-se que, em geral, essas propostas não estavam adequadas as práticas de ensino de ciências que têm sido postuladas por diversos autores, conforme descrito na seção dedicada aos aspectos pedagógicos de Carbópolis. Dessa forma, verificou-se a necessidade de mudar alguns dos paradigmas que norteiam a proposição e o desenvolvimento das atividades para o ensino de ciências com o uso do computador.

Um dos primeiros objetivos alcançados em nosso projeto foi estabelecer modelos de desenho e de funcionalidade para os materiais didáticos informatizados. O modelo escolhido foi o de simulação de questões ambientais para o desenvolvimento de estratégias de ensino de ciências por resolução de problemas. O funcionamento desse modelo consta em outra seção deste site.

No entanto, na proposição desse modelo também houve a necessidade de aprofundar o entendimento sobre alguns fatos e conceitos que seriam tratados em nossos materiais. Nesta seção, será brevemente descrito alguns dos passos seguidos na representação da questão ambiental utilizada no software Carbópolis.

Na produção de nossos materiais didáticos informatizados procuramos utilizar alguns dos conteúdos que já havíamos trabalhado em produção escrita. No caso de Carbópolis procuramos aprofundar algumas das questões que estavam presentes no livro Poluição do Ar [4]. Em relação ao livro, também, foram feitas modificações sobre o problema a ser estudado. Enquanto no livro o tema poluição do ar era abordado em seu contexto urbano, no software Carbópolis buscamos abordar esse mesmo tema em suas implicações com o meio rural. Isso se deve, principalmente, ao fato que os materiais didáticos informatizados que estamos produzindo estão relacionados aos meios de produção de energia elétrica e seus impactos ambientais. Finalmente, buscamos um problema atual e real para ser simulado no software.

No início da década de 90, a imprensa do sul do país noticiou que a chuva ácida que precipitava no noroeste uruguaio, diminuindo a produção agropecuária local, era provocada pela queima de carvão em uma usina termelétrica brasileira situada em Candiota-RS. Esse fato estava comprometendo a relação binacional Brasil-Uruguai, dificultando a emergente integração do Cone Sul [5]. Em reportagens seguintes, foi anunciado que, mesmo que os estudos uruguaios não fossem claros, seria fácil detectar a causa da chuva ácida e resolver o problema através de uma solução técnica [6,7].

No entanto, quase uma década se passou sem que o problema de Candiota fosse resolvido. Uma busca feita em dois jornais [8], um brasileiro e outro uruguaio, indicou a existência de algumas reportagens recentes que trataram dessa questão.

Em 1996, os uruguaios de Melo, distante cerca de 80 quilômetros a sudoeste de Candiota, continuavam apresentando problemas de saúde. Chegou-se a noticiar que as infecções respiratórias e a incidência de câncer pulmonar aumentaram [9]. Na ocasião, o governo brasileiro desconsiderou a possibilidade de uma rigorosa avaliação técnica na usina gaúcha. Além do mais, foi garantido pelo governo brasileiro, que os filtros necessários para evitar a emissão das substâncias poluentes já haviam sido instalados [10].

Em 1997, o problema de chuva ácida não havia sido solucionado, talvez por ele ser sazonal. Como esse está relacionado com o regime de ventos, o problema torna-se mais crítico no verão, quando os ventos são de nordeste e incidem em direção ao território uruguaio. Nesse ano, no entanto, o governo brasileiro comemorava a possibilidade de ampliar, através da privatização, o complexo carboelétrico gaúcho. Na ocasião, o presidente da CEEE (Companhia Estadual de Energia Elétrica - RS) descartou as "polêmicas relativas às denúncias de chuva ácida no Uruguai, garantindo que há documentos assinados por autoridades do país vizinho e referendados por organismos internacionais, que comprovam a inexistência do problema" [11].

Essa polêmica aumentou nosso interesse pelo assunto, particularmente pelo fato dos problemas identificados e das causas que lhe foram atribuídas serem descritos e explicados através das substâncias e reações químicas envolvidas. Então, para evidenciar o caso de Candiota, pode-se seguir um caminho que inicia com a identificação dos efeitos e, por hipóteses, supor-se a sua seqüência causal. A seguir, esse caminho é apresentado.

Os efeitos observados foram a queima dos pastos e das lavouras de arroz, além do enfraquecimento precoce do rebanho ovino e bovino [5]. Como é sabido que a produtividade agropecuária pode ser afetada pela poluição atmosférica, essa foi a hipótese veiculada pelos meios de comunicação de massa. Nesse caso, podemos buscar algumas explicações que poderão fortalecer essa hipótese.

Vejamos, a contaminação atmosférica pode prejudicar o aparelho respiratório do animal, uma vez que ele ingere ar contaminado. Contudo, é mais provável que os poluentes caiam sobre a comida do animal, que após ser ingerida pode ocasionar doenças. Com a ingestão dos contaminantes o animal pode morrer ou ter sua saúde alterada, inclusive com perdas de peso e no crescimento [12]. Por outro lado, as espécies e as variedades de plantas diferem em sua sensibilidade aos poluentes atmosféricos. Os sintomas de dano visível, por exemplo, sobre as folhas das plantas, atribuídas à poluição do ar podem ser consideradas em três categorias gerais, não necessariamente exclusivas: colapso do tecido foliar, clorose ou outras alterações da cor normal das folhas, e alterações no crescimento e produção das plantas [13]. Dessa forma, a hipótese de trabalho parece se firmar.

Assim sendo, podemos procurar algumas considerações com relação as causas da contaminação atmosférica, que podem ser naturais ou geradas pelo homem. As principais origens dos contaminantes naturais são: as erupções vulcânicas, a erosão dos solos e de rochas, o sal procedente da evaporação da água do mar, o pólen das plantas e a queima da vegetação, inclusive o gás carbônico que se libera em todos os processos de respiração e de decomposição biológica. A poluição produzida pelo homem está relacionada, principalmente: aos processos de envolvam a queima de combustíveis fósseis, à produção de cimento e à siderurgia [14,15,16].

Por sua vez, os poluentes podem dispersar, precipitar ou ser degradados. Além do mais, a dispersão dos poluentes não ocorreria somente na atmosfera, mas também nos processos naturais relacionados aos ciclos geológicos e hidrológicos. Dessa maneira, os poluentes que deixam a atmosfera podem poluir as águas, inclusive da chuva, ou mesmo alterar os ciclos geológicos [14,15,16,17].

Isso quer dizer que a água da chuva não apresenta a pureza que alguns podem lhe atribuir. Durante as etapas do ciclo hidrológico, por exemplo, a evaporação e a precipitação, ocorre a lavagem da atmosfera. Dessa forma, a água incorpora a maioria das substâncias presentes na atmosfera, sejam de origem natural ou resíduos da atividade humana. Assim, a composição da chuva pode variar de um lugar para outro pela ação de vários fatores, por exemplo: o tipo de ecossistema presente e alguns parâmetros meteorológicos, como clima e regime de ventos. Na natureza, a água da chuva não é pura devido, principalmente, a presença de sais de origem marinha e dos gases que compõem a atmosfera e que podem ser dissolvidos em água ou reagir com ela. Em condições normais, o composto presente no ar que mais reage com a água é o dióxido de carbono, ou gás carbônico. Por isso, esse gás é um dos principais responsáveis pelo caráter ácido da chuva. No entanto, outros gases, como os óxidos de nitrogênio ou de enxofre também reagem com a água, formando substâncias ácidas. Na atmosfera, essas substâncias precipitam na forma de chuva. Então, se há alterações na composição do ar, tanto pela interferência do homem como da natureza, ocorre a modificação da composição da chuva, o que pode causar sérios danos ao ambiente [14,17,18].

Os principais contaminantes atmosféricos são: o material particulado (MP) e os gases dióxido de enxofre (SO2), monóxido de carbono (CO), óxido e dióxido de nitrogênio (NO e NO2), sulfeto de hidrogênio (H2S), fluoreto de hidrogênio (HF), ozônio (O3) e hidrocarbonetos, como metano (CH4) [14,15,17].

Ora, admitindo a correção da hipótese de trabalho, podemos buscar por algumas outras informações sobre a possível origem dos poluentes identificados. Entre elas, procurar conhecer as características do combustível queimado na usina termelétrica.

Os combustíveis fósseis, como o petróleo e o carvão mineral, contêm, além de hidrocarbonetos, compostos com átomos de enxofre. A percentagem de enxofre pode chegar a 1% da massa total no petróleo e a 6 % no carvão, dependendo da origem do combustível. A combustão desses combustíveis provoca, também, a queima do enxofre que eles contêm. Assim, durante o processo de combustão o enxofre do carvão é combinado com o oxigênio do ar e é transformado em dióxido de enxofre, um gás, que liberado na atmosfera, é espalhado pelos ventos. [19]. A queima do carvão em usinas termelétricas é o processo provocado pelo ser humano que mais contribui para a produção do poluente gás dióxido de enxofre. Isso se deve a percentagem de enxofre que existe no carvão. Em função dessa característica, recomenda-se que, em processos de produção de energia elétrica, o carvão com mais de 2,5% de enxofre não seja utilizado ou, pelo menos, proceda-se a dessulfuração prévia do combustível [15,20,21].

Além do mais, os resíduos da produção de eletricidade pela queima de carvão mineral com alta concentração de enxofre – gases, cinzas e efluentes líquidos – contém elementos metálicos tóxicos que podem ser absorvidos pela vegetação ou drenados para rios e águas subterrâneas, prejudicando o meio ambiente [22].

Para o final desse nosso estudo, seria interessante notar que uma pesquisa a respeito do potencial poluidor da usina termelétrica de Candiota, Rio Grande do Sul, deixou claro que as medidas de controle de emissões e as exigências legais eram inadequadas ou insuficientes para evitar a contaminação ambiental [23,24].

Ou seja, para resumir o problema divulgado pelos veículos de comunicação de massa, pode ser apresentado um caminho pelo qual se descreve e explica o problema, iniciando com as causas atribuídas e chegando aos efeitos observados. Assim, na usina termelétrica de Candiota, a queima de carvão contendo taxas de enxofre maiores que o recomendável, entre 3,5 e 5%, produziu grandes quantidades de dióxido de enxofre, um gás bastante reativo e que é considerado poluente atmosférico. O dióxido de enxofre foi dissipado na atmosfera através da ação dos ventos, em direção ao Uruguai. A umidade do ar e a água da chuva reagiram com o gás poluente e ocorreu a precipitação de chuva ácida, que queimou os pastos e as lavouras de arroz e, provavelmente, atacou o sistema respiratório e digestivo dos animais, enfraquecendo-os.

Esse conjunto de conhecimentos, bem como algumas considerações sobre os aspectos econômicos [25,26] e de legislação aplicável [17], foi representado no software Carbópolis, cujas características e funcionamento estão descritos em outras seções deste sítio.

Referências bibliográficas:

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[3] Watabe, S.; Hamalainen M.; Whinston, A. An Internet Based Collaborative Distance Learning System: CODILESS. Computers Education, 24 (3): 141-155, 1995.

[4] Del Pino, J.C.; Krüger, V & Ferreira, M. Poluição do Ar. Porto Alegre: Área de Educação Química, 1997.

[5] Chuva ácida compromete imagem do País. (91, Dezembro, 23). Zero Hora, p.39.

[6] É fácil chegar aos culpados pela chuva ácida. (92, Abril, 04). Zero Hora, p.33.

[7] Nem os estudos uruguaios são claros. (92, Abril, 04). Zero Hora, p.33.

[8] Eichler, M. & Del Pino, J.C. Jornais e revista on-line: busca por temas geradores. Química Nova na Escola 9, 21-23, 1999.

[9] Candiota: Brasil se niega a reconecer lluvia acida. (96, Agosto, 21). El País, Montevidéu - Uruguai [Edição digital: http://www.diarioelpais.com].

[10] Laboratorios de distintos paises evaluaran lluvia acida de Brasil. (96, Dezembro, 22). El País, Montevidéu – Uruguai [Edição digital].

[11] Audiência pública discute usina Candiota III. (97, Outubro, 05). Correio do Povo [Edição digital: http://www.cpovo.net].

[12] Rechcigl Jr., M. CRC Handbook of Agricultural Productivity, volume I e II. Boca Raton, EUA: CRC Press, 1982.

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