Mudanças na matriz energética

Marilia Reina Puyol,
membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social de Energos.

O Banco Mundial está para anunciar uma decisão histórica: não vai mais financiar projetos de produção de petróleo, gás e carvão. A medida, recomendada em recente relatório do banco, deverá vigorar a partir de 2008, mas sinaliza para que lados pendem as instituições financeiras globais. Preocupadas com o desequilíbrio do meio ambiente planetário, elas tendem para as fontes energéticas renováveis. O prazo, 2008, é sintomático: conecta-se com a entrada em vigor do Protocolo de Kyoto, que recomenda a redução nas emissões de gases poluentes. Ainda pouco perceptível, há no mundo uma marcha inexorável rumo ao cumprimento do Protocolo de Kyoto, o mais importante pacto ecológico firmado no planeta.

Mesmo nos Estados Unidos, cujo governo se negou ostensivamente a subscrever esse megaacordo antipoluição, observam-se diversos sinais de racionalidade. Dois exemplos: primeiro, por determinação da Agência de Proteção Ambiental (EPA, sigla de Environmental Protection Agency) dos Estados Unidos, as refinarias norte-americanas estão aptas a reduzir drasticamente o potencial poluidor das gasolinas que produzem. A média deve cair de 120 partes por milhão (ppm) de enxofre em 2004 para 90 ppm em 2005 e 30 ppm em 2006. Os padrões novos para a gasolina farão com que as emissões dos veículos sejam 95% mais limpas do que as dos veículos atuais. Segundo, a agência ambiental norte-americana está trabalhando em conjunto com 47 países na montagem de um sistema de partilha de informações relativas ao meio ambiente. O sistema, de nome Earth Observation System (EOS), permitirá a troca de informações sobre clima e tempo, além de outros dados que melhorariam o padrão de controle da qualidade da vida na Terra.

Os pessimistas ou os que se consideram realistas podem me acusar de ingenuidade, mas não nos deixemos enganar pelas aparências. A rede da EOS pode ser encarada como (mais) um instrumento de "controle" dos norte-americanos sobre o mundo, mas não estamos de mãos amarradas, não paramos de pensar e podemos, por exemplo, trabalhar pela união dos inconformados com o excessivo poderio ianque.

 

A invasão militar no Oriente Médio comandada pelo governo norte-americano pode dar a impressão de que o petróleo é o combustível do século XXI. Mas a recente alta dos preços petrolíferos só veio confirmar o que sabemos há décadas: o modelo energético vigente na maioria dos países tem dias contados. Não é novidade que governantes, técnicos e empresários de todo o mundo já perceberam que a única saída em curto prazo é produzir combustível a partir da biomassa. O Brasil é referência nesse aspecto.

Os países que têm território e clima favorável - casos da Índia, China e Austrália - estão entrando para valer na era do álcool. Os países europeus e o Japão talvez venham a importar álcool do Brasil. Já disse e repito: a globalização da economia tem de ser caminho de mão dupla. O Brasil chegou ao fim do século XX na vanguarda de um profundo processo de reciclagem energética. Deixando de lado o potencial para a produção energética de origem hídrica, quero lembrar que foi desenvolvido um fantástico projeto agroindustrial que começa no plantio de cana-de-açúcar e termina numa ampla rede de postos de abastecimento de veículos. Entre as duas pontas desse projeto estão a fabricação de álcool, o aproveitamento do bagaço (como insumo energético), da palha e da vinhaça (como insumos agronômicos) e a preparação de motores especiais, aptos a consumir álcool ou gasolina. Nenhum país chegou ao ponto em que o Brasil chegou. O que falta é fazer a crítica do processo e estabelecer um programa de trabalho para os próximos decênios, quando se agravará a crise do atual modelo energético do mundo.

O modelo brasileiro não é bom apenas para o Brasil. Pode ser bom para o mundo e para Energos. É exportável de ponta a ponta. Já compramos alguns itens dessa tecnologia genuinamente brasileira, mas poderíamos ir muito mais longe. A abundância dos recursos naturais pode nos garantir o privilégio de depender do petróleo muito menos do que outros países. É esta a hora, por exemplo, de ser agressivo quando surge uma brecha como a anunciada pelo Banco Mundial. Ainda que continue por algum tempo dando empréstimos a projetos de exploração de combustíveis fósseis, o banco tende a restringi-los, ao mesmo tempo em que abre a porta para financiamento de projetos alternativos. Rápido: A única saída em curto prazo é produzir combustível a partir da biomassa.

Adaptado de:
Gazeta Mercantil, 24 de Junho de 2004.